A luz na Igreja Gótica do século XIII ( Parte II)

Por Leila Regina Pereira dos Santos

No artigo anterior destaquei a altura da Igreja Gótica e o uso da pedra nessa arquitetura como aspectos da manifestação de notas da realidade, que indicam, primordialmente, a ordem dessa cultura. Essa ficou evidente na forma como o sistema de encaixes de pedras suportou alturas elevadas, ao mesmo tempo em que nessas proporcionou as áreas de maior leveza da construção, dadas por Rosáceas e Coruchéus.

Um sistema projetado mentalmente, idealizado, em princípio é uma mera possibilidade que apenas no exercício prático de sua concretização pode provar se sua proposta tem coerência, adequação, o que é algo imprescindível para revelar sua correspondência com a ordem natural da realidade. Na igreja gótica temos assim o exemplo mais desafiador da história da arquitetura ocidental, pois o objetivo por alcançar grandes alturas foi realizado com esse material de extrema densidade e peso, que é a pedra, e que dificultava ainda mais a necessária superação da força da gravidade.

A rosácea do transepto norte mostra a Criação. Foto: pt.wikipedia

As notas expressas por essa combinação não são poucas. Suscitam impressões tais como: a magnitude da obra definida por sua altura; a perenidade da construção revelada pela densidade da pedra; a fortaleza evidenciada por essas duas notas; e a interação do sistema edificado da igreja com o meio exterior. Essa interação foi possível com a presença dos elementos vazados – coruchéus e rosáceas –, assim como dos vitrais translúcidos das grandes vidraças coloridas. São elementos combinados para definir uma ideia completa de obra arquitetônica como sistema. A forma do conjunto traduz seu conteúdo.

Roger Scruton em seu livro Beleza destaca a relação entre conteúdo e forma na obra de arte, e evidencia o aspecto significativo dessa, “as obras artísticas são significativas, e não apenas formas interessantes das quais usufruímos sem nenhuma explicação. Elas são atos comunicativos que nos transmitem um significado – e que deve ser compreendido.”(p.120)

A nave da Basílica de St. Denis. Tiro da capela-mor.. Foto: pt.wikipedia

A Igreja gótica é uma arte que foi concebida e concretizada de modo a integrar ao máximo a forma ao conteúdo, e por isso importa entender que o significado dessa obra depende de toda a conformação dada aos elementos. Em todos os seus detalhes, a integração dos elementos define o corpo de significados, e esses em unidade compõem a simbologia específica dessa arte.

Em cada detalhe, cada elemento ou aspecto, há uma contribuição para a captação dessa obra de arte enquanto símbolo. Destaco nesse momento a especial luminosidade presente na igreja gótica, natural, que incide e transpassa os vitrais presentes nas laterais do conjunto edificado.

O túmulo de Luís XII e Ana da Bretanha (século 16) na basílica de St Denis , França.. Foto: pt.wikipedia
Monumentos funerários do Rei Luís XVI e da Rainha Maria Antonieta (não seus túmulos), Basílica de Saint Denis, França. Foto: pt.wikipedia

Segundo Victor Nieto Alcaide, em La Luz, Simbolo y Sistema Visual, esses vitrais projetam-se em dois sentidos, um deles é ser meio para a configuração simbólica do espaço, e outro é ser suporte de conteúdos iconográficos do conjunto figurativo da catedral.  No primeiro caso, a luz que transpassa o filtro dos vitrais simboliza a lux spiritualis ou imagem de Deus, e compõe “un complejo sistema de metáforas visuales que simbolizan la idea de la divinidad.” (p.44)

A luz aparece como mais uma nota real a compor a unidade simbólica da igreja Gótica. Soma-se aos demais elementos citados – e que destacam impressões de magnitude, perenidade, fortaleza, ordem natural – , e agora com a luz, a presença divina.

Ambulatório construído pelo Abade Suger. Foto própria, abril de 2005, – Beckstet 10:19, 29 A. Foto: pt.wikipedia

Por ser a luz capaz de transpassar um elemento material, como os vitrais, e não rompê-los, passou a ser “metáfora explicativa de ciertos misterios”(p.48). A luz simboliza a ideia do imaterial, e portanto suscita a onipresença divina.

Ainda em Nieto Alcaide, com base na obra de Panofsky e Gombrich, aparece a ideia, manifesta pelo abade Suger de Saint-Denis, de que a luz refletida em diversos objetos e elementos da composição da igreja “podía trasladar su mente de lo material a lo inmaterial, de lo corpóreo a lo espiritual; el efecto se determinaba en una especie de ascensión del mundo inferior al superior. Estas obras por su luminosidade actuaban como um verdadero agente de iluminación espiritual” (p.54)

Sobre o segundo caso do simbolismo da presença da luz na igreja gótica, o de ser suporte de conteúdos iconográficos do conjunto figurativo da catedral, veremos num próximo artigo.

Basílica de Saint-Denis de Saint-Denis, no norte de Paris. 2008. Foto: pt.wikipedia

Referências Bibliográficas:

ALCAIDE, Victor Nieto. La luz, símbolo y sistema visual. Madrid: Cátedra, 1993
ALONSO PEREIRA, José Ramón. Introdução à História da Arquitetura: Das origens ao século XXI. Porto Alegre: Bookman, 2010
ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 1997
BURCKHARDT, Titus. Chartres y el nacimiento de la catedral. Palma De Mallorca: Olañeta, 1999
DONDIS, D. A. Sintaxe da linguagem visual.3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007
GOMBRICH, E.H. El sentido de Orden. Barcelona: GG, 1980
LANGER, Suzanne. Sentimento e forma. São Paulo: Perspectiva, 1980
LAVELLE, Louis. Ciência estética metafísica. São Paulo: É Realizações, 2012
MACAULAY, David. Construção de uma catedral. São Paulo: Martins Fontes, 1988
PANAFOSKY, Erwin. A perspectiva como forma simbólica. Lisboa: Edições 70, 1993
___. Arquitetura Gótica e Escolástica. São Paulo: Martins Fontes, 1991
SCRUTON, Roger. Beleza. São Paulo: É realizações, 2015

 

 

 

Leia mais: 

Série Arquitetura Gótica: igrejas (Parte I)

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